Do rabisco na agenda ao deletar do celular

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O tempo molda a vida, e a vida aconchega-se ao tempo, de modo que viver é o equilibrar-se em um carrossel frenético de boas e más novas, que vão se acumulando como os grãos de areia no fundo da ampulheta. Se antes, nas agendas telefônicas, riscavam-se a tinta de caneta os nomes já sem sentido ao coração, ou para sempre de corpo ausentes, lastros da memória, hoje a agenda é o celular, não mais risca-se, deleta-se. Em vez dos caminhos tresloucados da caneta no papel, resta após o deletar apenas o antisséptico vazio da tela em branco, sem marcas ou vestígios, como se o nome nunca houvesse ali existido. A cada época, há uma forma de esquecer, e as formas de esquecer contam uma historinha sobre as suas épocas. O rabisco na agenda é a marca do que se viveu, o acidente de percurso, ou simplesmente o fim natural de um ciclo da jornada. É o traço final do que persistirá como experiência, história, talvez um punhado de sabedoria. Ao apagar-se o nome no celular, nada sobra: é a tentativa de destruir o próprio passado, negar-lhe a existência. 
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A pandemia e os anos de 2020 e 2021 foram uma fábrica de desejos de esquecimento. Ansiedade vã: o que foi sempre nos fará companhia, seja por assombração ou por deslumbramento. Mas se, ao contrário do esquecimento, desejar-se ainda mais do que já não é?

Nas semanas quase mortas da fase vermelha – aliás, não sei porque se dá à fase do isolamento a cor vermelha, que remete à expansão, ao encontro, ao amor -, o tempo se dilatava e as horas vagas se completavam mais devagar. Certo dia desses, já exaurido pelo tédio após mapear manchas quase invisíveis no teto da sala e programar amplas e irrestritas pinturas das paredes, peguei na cômoda o celular para limpá-lo, deletar, apagar – enfim, esquecer. Parido e criado em outras tecnologias, meus dedos pouco adestrados cutucaram aqui, fuxicaram ali, até encontrar a agenda de contatos. E na agenda de contatos, marcado com estrelinha, no olimpo das pessoas mais próximas – o tal ‘contatos em destaque’ – surgiu o rosto de minha mãe.  

Foi um choque: minha mãe morreu. A fotografia de rosto sorridente, guardiã da sequência de nove números que costumava encurtar a distância entre nós, logo abaixo, não fazia mais sentido ali na agenda. No entanto, não consegui deletá-la. Ao contrário, cresceu o desejo de lembrar, de me agarrar à memória como o faminto ao prato de comida, e depositá-la naquela fotografia. O impulso expandiu-se e, a partir de uma pessoa, abarcou o mundo inteiro. À imagem de minha mãe em outros tempos, angustiada ou feliz, mas viva, juntou-se a de um barco a vela preguiçoso, cingindo o mar da baía de Santos, na incerteza do rumo certo, em um qualquer dia de sol. Ou a da música exuberante – sim, música tem imagem! – em meio ao frenesi de riso e ao aroma do chope derramado nas bandejas dos garçons abrindo caminho por entre o bailar dos corpos, em algum bar onde a única restrição era a resistência ao doce abandono de si. Ou, ainda, vi-me imerso na mais densa aglomeração entoando com outros milhares algum refrão de rock; ou de sorvete em punho esbarrando no vaivém das gentes risonhas e ensacoladas enquanto um saxofonista na próxima esquina ensaiava a melodia de noite feliz; ou de sunga, peito aberto, no alto da cachoeira de cinco metros, sentir o frio na barriga mesmo sabendo que a queda, nunca sendo suave, seria sempre segura.  

O som dos grilos ou dos gatos em fúria nas madrugadas boêmias, dos pássaros que chegam com a luz ao alvorecer, do champanhe, dos fogos e à meia-noite dos abraços em gente desconhecida, mas tão familiarmente humana, nas viradas de ano na praia, viradas que a cada ano ou a cada segundo a existência dá, se em um momento a única máscara que se usa é a da vida, no outro, pandemia. Por isso, urge lembrar, jamais esquecer, porque a dor pode ser a matéria-prima à esperança mais sólida. 

Em tempo: naquele dia, com o celular nas mãos, a fotografia de minha mãe na tela, não resisti e enviei uma mensagem de texto: “Mãe, como você está? Espero que bem”. Ainda aguardo resposta. Um dia hei de recebê-la, quando o círculo se fechar, e esta crônica, memória.

 
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Ronaldo Vaio

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Santista de todos os jeitos, jornalista desde 1997, editor de artes e variedades em A Tribuna e viajante de mundos e palavras.

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