O espelho partido ou nuvem passageira

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nuvem

“…Cirros pela manhã, nimbos à tarde e cúmulos o dia todo. Um grande meteorologista por aqui as estudaria (as nuvens) e ligaria os pontos incompatíveis entre ciência e arte. Estes cúmulos deformam-se tão lentamente que eu diria refletem em tamanho nossa crescente deformidade” 

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Paulo von Atzingen, no livro Em Busca da Realidade Mágica

Ainda repleto de nuvens na cabeça, algumas carregadas de tempestade, fechei o livro do meu amigo Paulo von Atzingen e fui à farmácia da esquina mais próxima. Sabe aquela expressão, ‘uma padaria em cada esquina’? Em Santos, substitua padaria por farmácia. Precisava de um xampu para os lindos cabelos encacheados da minha filha, tão mais lindos quanto maior a minha saudade. Entrei na farmácia, pensei em driblar a balança ao lado da porta, mas ela ficou me encarando de tal forma, não consegui me desvencilhar de seu magnetismo irônico: cerrei os dentes, devolvi-lhe o olhar e resolvi enfrentá-la de peito aberto. Aproximei-me, livrei-me de mochilas e penduricalhos, e pisei-lhe em cima.

Ao contrário dos capachos, em que se imagina, por exemplo, aquele político nefasto para se esfregar mais forte os pés, na balança a batalha é mais sutil, o desejo é o de passar desapercebido. Para tal, criam-se artimanhas como ficar na ponta dos pés ou brincar de estátua: não se mexe um músculo; outros apelam ao esoterismo e têm ganas de levitar. Não fiz nada disso (ah, vá, reconheço: prendi a respiração…). Seja como for, vi a balança mostrar exatamente como estou, revelar em detalhes ‘gramáticos’ (e dramáticos) o incomensurável peso que carrego, se não nas costas, por certo no abdômen. 

Contrariado, dei as costas à balança e tentei imprimir na cara um ar de desdém e pouca importância. Me dirigi à atendente, soterrada no meio da loja por caixas de tintura de cabelo que tentava equilibrar em uma pirâmide de ofertas, e perguntei-lhe dos xampus infantis. Cheguei à prateleira indicada, surpreendi-me com a variedade, há mais tipos de xampu do que cabelo na cabeça das crianças. Indeciso, pesei, analisei, comparei, até escolher algo entre o Mickey e a Mônica, que tornaria o banho menos tortuoso. Quando estava na fila do caixa, correm as portas de vidro como se abrissem as cortinas do teatro: entra um homem e seu drama. À beira do pranto, sem as amarras dos pudores, na liberdade que só o desespero engendra, roga por ajuda: sem trabalho ou perspectiva, a fome ronda a si, à mulher e aos filhos pequenos. Fala e diz durante trinta segundos. Vira-se e sai, deixando um rastro de silêncio. 

Termino de pagar e também saio. Do lado de fora, agachado, encostado na parede da farmácia, ele chora. Passo reto: ali perto há um supermercado. Volto com sacolas de arroz, feijão, macarrão, óleo, molho, sardinhas. Ele se ergue, estendo as sacolas, os olhares se cruzam e, de repente, a mão que dá e a mão que recebe são a mesma, não há diferença entre mim e ele, ele é a minha imagem em um espelho partido, de um país rachado. Volto ao livro de meu amigo Paulo: se nas nuvens está refletida nossa deformidade, também é certo que toda nuvem é passageira.

 
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Ronaldo Vaio

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Santista de todos os jeitos, jornalista desde 1997, editor de artes e variedades em A Tribuna e viajante de mundos e palavras.

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