Antes tarde do que nunca, caiu-me nas mãos o já clássico O Poder do Mito, reprodução em livro de uma série de colóquios entre o professor Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, originalmente veiculada na tevê estadunidense nos anos 80. Campbell, morto ainda em 1987, era um especialista no assunto, mas não como usualmente imaginamos a palavra ‘especialista’: alguém que domina um conhecimento ou técnica, apartado do objeto de estudo. Ao contrário: percebe-se um ser inserido no próprio estudo. E lá pelas tantas, torna-se evidente que de outra forma nem poderia ser, tendo os mitos por função nos confrontar com o mistério da existência. Ao fazê-lo, ordenam e dão sentido ao ciclo de vida e morte, bem como, pela transcendência, nos posicionam no tempo e lugar das eternidades, que se exaurem com cada riso ou lágrima. Mas sabe-se porque se chora, sabe-se porque se ri.
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Hoje vagamos por aí como almas penadas. Apartados, da natureza somos parasitas, desconhecedores da profundidade do mundo e dele desconhecidos. Mundo que gira em vertigem, em descompasso com o anseio que oprime o peito justamente pela falta de sentido, de razão de ser, de razão de sermos. O ciclo Natal-Páscoa, por exemplo, esvaziou-se do significado simbólico mais profundo: o nascer, o recolher-se para desenvolver, a provação, a superação, a maturidade, o ponto de passagem (o batismo) e o tempo da missão, cujo ápice é a imolação ritual, em que o cordeiro perece para a salvação de toda a tribo. Como salienta Campbell, a vida se mantém pelo matar e comer, cuja aceitação, pelo ser humano, requer extrapolar a realidade crua, atribuindo um valor transcendente a esse processo.
Ao aportarem nas Américas, Colombo e sua trupe escandalizaram-se com a barbárie de povos que praticavam sangrentos sacrifícios humanos. Prisioneiros vencidos em batalhas eram ofertados para aplacar a ira dos deuses e garantir a manutenção dos ciclos naturais. Claro, nem de longe se defende aqui a prática. Mas nela havia um sentido profundo, aliás, tão profundo, que as tais batalhas, entre etnias distintas, eram programadas unicamente para o fim de se obter os prisioneiros necessários aos deuses. Hoje, espanca-se até a morte um ser humano no supermercado e ninguém se pergunta o porquê. No máximo, experimenta-se uma indignação entorpecida, logo aplacada pelo post inteligente na rede social, isso quando não há quem abertamente aplauda o ato, o qual os antigos habitantes das américas, escandalizados, por certo chamariam de barbárie…
Assim, os mitos estão intrinsecamente unidos à ideia de sagrado, muito mais profunda do que podem abarcar ou satisfazer as leis ou dogmas religiosos. Ao se negligenciar os pilares míticos, como ocorre há alguns séculos no Ocidente da supremacia da razão, esvaziam-se as religiões, criando um perigoso vácuo de religiosidade. Um vácuo cuja necessidade de preenchimento induz alguns a crer que a terra é plana, e outros a atribuir a delirantes bufões aventureiros a alcunha de mito – o que seria piada, não fosse ruína.
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