Minha casa: dos perigos à quietude


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Após uma longa viagem ao redor de mundos sombrios ou nem tanto, mas se há luz, é sempre de braço dado às trevas, melhor é voltar à casa que se tem, à casa que se é. Abro a porta com cuidado e pudor, a ânsia não é a de simplesmente adentrar, cruzar a soleira e as vidas que se vão acumulando lá fora, mas a de reencontrar a vida que pulsa cá dentro. Fecho janelas, cerro cortinas, acendo lamparinas e abajures, as verdadeiras luzes que alumiam os nichos e esquinas, os entrocamentos e encruzilhadas, pois o que mais há em casas como essas são ângulos retos demais, curvas sinuosas demais, silêncios eloquentes demais: se o corpo sem cautela deixa-se ir, pode acidentar-se em paredes ou vigas, ou ser tragado nas penumbras, que dessas sempre haverá, mas, diferentes daquelas das vidas lá de fora, provêm da nossa própria escuridão.

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Assim, no retorno, é bom caminhar pela casa com cautela. Mas é bom caminhar, frise-se. É necessário encontrar-se no quarto vazio, as portas escancaradas do guarda-roupa, umas roupas esparsas que já não nos servem mais por gavetas envelhecidas, algumas mofadas pela umidade do tempo que se esvai e nos leva nas costas. É bom sentir a cama em que há muito descansamos os corpos e acordamos os sonhos, a cama empoeirada e ainda desfeita da última noite mal dormida, tantos anos atrás. É imprescindível entrar no banheiro, as paredes enegrecidas, as crostas de sujeira no entremeado dos pisos, as manchas escuras no espelho como marcas das idades na pele, maculando o rosto já irreconhecível, e então um susto: quem é aquele que tenta sorrir, mas só consegue arregalar os olhos em assombro? Vira-se o rosto, urge abrir o chuveiro, que jorre a água, lave o que há para ser lavado, limpe entranhas e suores, se forem de amores vãos, que não deixe vestígios. A água é sempre quente demais ou fria demais, se quente for, abraça-se a natureza do queimar, se fria, entrega-se ao tremor e eriçar da pele. É o que se tem, pois o que é morno será cuspido da boca.

É preciso ir à cozinha, onde está o sabor e a sensaboria, a acidez e a doçura, por vezes o amargor. É onde está o alimento. É preciso revirar as prateleiras pelas frutas e legumes da alma, por vitaminas contra paixões malsãs, pois, um dia “solto-me do abraço, saio às ruas. No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua. A lua tem duas noites de idade. Eu, uma”. Minha velhice não é suficientemente velha para que esteja imune aos desejos, busco na cozinha algum composto, uma sopa de verdades, um suco de boas reminiscências para me devolver à lucidez.

Mas é na sala que vejo as notícias. Sob a fina camada de pó da tela, o blá blá blá é uma torrente de novidades febris e desesperos virtuais. Há 340 mil mortos lá fora, sem nomes ou rosto, como se fossem vidas distintas desta que a minha casa acolhe. Mas em cada história, havia um coração. E para cada coração desses, há outros partidos e estilhaçados. Se não é para chorar o leite derramado, exorto a quem o derramou que lamba o chão até a língua apodrecer, já que ela não cabe no bom senso ou regula-se pela compaixão. Desligo a tevê, vou caminhar: minha casa tem muitos perigos, mas é minha quietude.

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Ronaldo Vaio

Santista de todos os jeitos, jornalista desde 1997, editor de artes e variedades em A Tribuna e viajante de mundos e palavras.

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