Um fenômeno e a tragédia anunciada

De novo, a emergências das coisas me leva a escrever sobre outros fenômenos que não a música, os shows, a diversão.

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O Litoral Norte de São Paulo sofreu a maior chuva da história do País: mais de 600 mm em um período de 24 horas. O resultado disso foi mostrado à exaustão pela mídia: dezenas de mortes, transtornos diversos e uma chaga social (mais uma) exposta. Por coincidência, eu e minha família estávamos lá, em Maresias, onde pela primeira vez em mais de 30 anos pude aproveitar a semana de Carnaval sem estar numa redação de jornal. tragédia

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Por caminhos tortuosos, São Sebastião ganhou as atenções do Poder Público (Federal, Estadual e Municipal). Com toda a razão. Presidente da República, ministros, governador do Estado, prefeito, todos envolvidos na solidariedade e nas providências necessárias para minimizar o sofrimento de quem perdeu pessoas e o lugar que chamavam de casa. 

Estávamos ilhados em Maresias, num residencial que foi pouco afetado, a não ser pelas águas do rio homônimo que transbordou e invadiu o espaço condominial. A água entrou em algumas casas, mas nada que se configurasse no terror vivido pelos mais pobres. Afinal, ali só estávamos passando alguns dias e nossas casas, fora de São Sebastião, continuavam firmes, fortes e acolhedoras. 

Como um lugar tão belo e convidativo poderia se transformar, no espaço de poucas horas, em cenário de horror? Num primeiro momento, julguei necessário haver empatia e solidariedade, o que ocorreu de fato com as doações enviadas de várias partes do País. Depois, com o passar dos dias, entendi que as atenções, por quem de direito, deveriam ultrapassar esses sentimentos humanos. Só empatia não basta para mitigar esta chaga. Ação, sim, após um processo de mea culpa produtivo para que erros, por absoluta cegueira consciente, não voltem a se repetir. Não adianta responsabilizar os mais pobres por ocuparem lugares inóspitos e ameaçadores. Eles estão ali, porque servem aos mais privilegiados: seja para construir casas aconchegantes em áreas paradisíacas, arrumar um defeito no teto, fazer a faxina ou atender aos visitantes e moradores ilustres em suas demandas de lazer. 

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Se a especulação imobiliária transformou sonhos em realidade, boa parte dos obreiros que converteram a fantasia em algo palpável tinha de ir para algum lugar. Não ganharam o suficiente para, uma vez atendida a voracidade dos especuladores, se instalar em núcleos habitáveis (com água tratada, energia elétrica, urbanização e demais providências sociais, como escolas e postos de saúde). 

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O “planejamento urbano” abriu ruas, deixou-as transitáveis aos que buscam a Cidade para o lazer. Porém, ao mesmo tempo, permitiu picadas na mata morro acima aos serviçais. O tal planejamento, que não tem apenas um responsável, achou que havia feito sua parte: remunerou os milhares de trabalhadores pelos serviços prestados. Basta apenas isso?

Como disse a urbanista Raquel Rolnik, em artigo publicado em agosto de 2001, “Os cidadãos têm, entretanto, o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir, concretamente, sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas”. Referia-se ao Estatuto das Cidades, um poderoso instrumento fenômeno da favelização desenfreada. Ou seja, é uma via de mão dupla, com todos os atores opinando.

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Também vale destacar a oportuna advertência do ex-secretário de Meio Ambiente do Estado, Xico Graziano, em entrevista para a jornalista Arminda Augusto, em A Tribuna (24/2). Perguntado qual recado daria ao governador e aos prefeitos das cidades litorâneas, mais vulneráveis nos períodos chuvosos, foi taxativo: “Cuidado, não compactuem com essa política que namora a morte. Quando essas pessoas morrerem, vocês também serão culpados. Os prefeitos dessas cidades sabiam que essas pessoas que morreram não podiam estar lá”.

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É isso, ou estaremos, de tempos em tempos, flertando com as tragédias que ocorrem ao nosso lado. Esta é a razão para dizer que empatia é importante, mas não o suficiente.

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Mario Jorge

Mário Jorge de Oliveira é jornalista formado em 1988, pós-graduado em Comunicação e Didática, todos pela Universidade Católica de Santos (UniSantos).

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